O Conceito de Amizade (Philia) em Aristóteles

Wilton de Oliveira

ITECH-Instituto de Terapia e Estudo do Comportamento Humano

A observação do Ser Humano como um ser de relações, não só com o mundo físico, mas especialmente com o mundo social, faz emergir aquilo que o caracteriza como humano, ou seja, essencialmente um ser-com-outros. Deriva-se dessa peculiaridade o conceito de intersubjetividade.

“O Homem é essencialmente sociável, sozinho não pode vir a este mundo, não pode educar-se, nem ao menos satisfazer suas necessidades mais elementares, nem realizar suas aspirações mais elevadas: ele pode obter tudo isso apenas em companhia dos outros”. (3)

Aristóteles definiu o homem como um “animal político" e afirmou:

"Quem não pode fazer parte de uma comunidade, quem não tem necessidade de nada, bastando-se a si mesmo, não é parte de uma cidade, mas é uma fera ou um deus.”(4)

Para Aristóteles o homem é zóon (ser vivente) logon (razão ou palavra) ekon (dotado), ou seja, zôon logikon, ser dotado da fala e do discurso, “o homem transcende de alguma maneira a natureza e não pode ser considerado simplesmente um ser natural”.(5)

É a palavra, o discurso ou a linguagem que possibilitarão o desenvolvimento da intersubjetividade. Segundo, Lima Vaz:

“A linguagem é o medium no qual se constitui a relação de intersubjetividade o no qual o Outro faz ao Eu em sitação de reciprocidade, serão as diversas modalidades do emanciar-se do sujeito, interpelando e respondendo, que irão dar origem aos infimitos fios com os quais se tece o encontro com o outro. Assim, a relação de intersubjetividade tem lugar justamente no terreno desse aproximar-se do outro e a ele responder, e é nesse terreno que seus diversos aspectos podem ser analisados”.(6)

O solipsismo ou a consciência solitária do cogito ergo sum (penso, logo existo) cartesiano, perde o sentido à luz do conceito de intersubjetividade e assume a sentença cogito ergo sumus (penso, logo existimos). O pensar, uma manifestação subjetiva, só é possível diante do encontro antecedente com o outro, na intersubjetividade primeiro somos, depois sou. Para Descartes o ser pensante é um ser em si, é uma "substância" pensante, mas o que isso significa? Morente explica: "significa que está aí; que existe em si mesmo, independentemente de mim; mas que em todo momento pode chegar a ser conhecido por mim.”(7)

No espaço da intersubjetividade o eu e o outro não são mera substância ou coisa a ser conhecida, nela "só me é possível afirmar o outro ou a acolhê-lo no espaço intencional do meu sentir, entender e querer na medida em que for ele também afirmado. Do contrário recairíamos na relação de objetividade, ou no caso extremo da coisificação do outro”. (8)

Emmanuel Lévinas tece uma crítica à toda filosofia que tem origem no cogito cartesiano, denominando-a egológica:

"No conhecimento se é dois, mesmo quando se está só; é na insistência sobre a relação a outrem, própria da socialidade em termos éticos e religiosos: tu lerás a quem amar, tu terás por quem existir, tu não podes ser só para ti."(9)

Toda egologia estaria voltada na dominação do homem pelo seu semelhante. O outro deixa de existir e deve ser eliminado, ou usado para fim em si mesmo.

Desse modo afirma-se o conceito de reconhecimento, pois nele está a possibilidade do conhecimento do diferente, e se transcende a visão do outro como abjeto de dominação, que assume-se como revelação. O outro, mais uma vez, deixa de ser coisa, ou coisas desveladas (liradas o véu), em vez disso passa a existir espaço para o encontro. Assim, o outro se impõe por si mesmo a mim. Ele aparece com sua própria luz, ou seja, ele se revela.

Diante dele eu não posso deixar de reconhecer sua presença:

"Na relação de intersubjetividade, enquanto propriamente reconhecimento, temos a identidade da diferença do Eu fazendo face a identidade na diferença do outro Eu, vale dizer, temos a afirmação reciproca do outro como Eu”. (10)

Buber, nesse contexto, estabelece uma distinção fundamental entre Eu, Isso (Ichseén, Dasein, Essein). Refere-se à uma relação de encontro, dialógica e dialética, quando ambos, eu e tu, estão na presença, um do outro, como um face à face. “O tu é um outro que se revela”. (11)

Quando se torna objeto (o tu jamais é objeto) a relação deixa de ser relação eu-tu para ser relação eu-isso. Quando a racionalização e ou a objetivação estão presentes o tu desaparece, e dá lugar ao isso. Mas quando na natureza encontramos um tu, o mundo objetivo desaparece e surge o mundo da existência ou da co-existência. Está, desse modo, sendo reafirmado o conceito de intersubjetividade. Estamos falando, com isso, de reciprocidade (que é um fluxo dialético, de ir e vir interpessoal). Segundo Lima Vaz:

"O bloqueio dessa situação (de fluxo) pela fixidez objetivante do olhar ou fixação do outro na opacidade objetiva do em-si (em-soi) é justamente o que torna impossível ao conhecimento do outro  elevar-se ao plano do reconhecimento autêntico”. (12)

Destacamos, aqui, dois vínculos distintos que podem ligar os homens entre si, vínculos estes que denominamos expressões da intersubjetividade: Philia (ou amizade) e Agápe (ou amor). Esses vínculos vêm propiciar e buscar resolver o problema da comunicação de pessoa a pessoa, posto que são vinculos de união, e conduzem a interação entre sujeitos que se reconhecem e fazem parte de uma também autêntica comunidade. Veremos em seguida a Philia em sua concepção Aristotélica.

CONCEITO DE PHILIA EM ARISTÓTELES

A palavra grega Philos é traduzida como "amigo, caro, querido” (13) sua derivada  Philia denomina o substantivo amizade, palavra esta que vamos usar no decorrer do trabalho para facilitar o entendimento:

"Entre os vínculos que podem ligar os homens entre si na comunidade, destaca-se o da amizade, cujo louvor torna-se um tópos clássico da filosofia e da literatura antigas. São dois os fios que se cruzam os laços da amizade e é provavelmente a dificuldade de atá-los solidamente que esta no fundo da aporética da relação de intersubjetividade no pensamento antigo: o fio da "natureza" (physis) que se manifesta na disposição natural, na afinidade e na afetividade; e o fio da “razão” (logos) que se manifesta no ideal do bem e da virtude como fim da amizade. Assim os sujeitos, termos da relação de intersubjetividade, conquanto mergulhados nas contingências da sua existência empírica, permanecem polarizados pela luz do logos que os torna iguais, num tipo de relação que exprime a mútua reflexão dessa iluminação do logos, essência da amizade, encontra por sua vez suas formas mais elevadas de realização nos planos ético e político”. (14)

Aristoteles é quem sintetiza e mais avança sobre o conceito de amizade, dentro do pensamento antigo. Analisaremos este conceito, por conseguinte, no decorrer desse capítulo, buscando achar seus principios fundamentais dentro do pensamento Aristortélico.

Segundo Reale e Antiseri (15), Aristóteles definiu as ciências em três grandes ramos: as ciências teoréticas (ciências que buscam o saber em si mesmo), as ciências práticas (ciências que buscam o saber, para através dele alcançar a perfeição moral) e as ciências poéticas ou produtivas (ciências que buscam o saber em função do fazer, com o objetivo de produzir determinados objetos). O tema da amizade está inserido nas ciências práticas, mas propriamente na ética. Sendo assim, em seguida, está uma breve sintese, sem aprofundamento, de sua ética; para que possamos entender melhor, logo após, seu conceito de amizade.

A ETICA ARISTOTÉLICA

Para Aristoteles a ética é definida como o estudo da conduta ou do fim do homem como indivíduo. Todas as condutas humanas tendem a “fins" que são bens". Todas as ações e bens particulares subordinam-se a um "fim último", que é um 'bem supremo", que se dá o nome de "felicidade". Mas o que é a felicidade? Para muitos é o prazer. Contudo, uma vida voltada para o prazer é uma vida que nada se diferencia da vida dos animais.

Outros consideram a felicidade como sendo a honra. Segundo Reale e Antiseri:

"para o homem antigo, a honra correspondia àquilo que é o sucesso para o homem de hoje" (16). Mas a honra é extrínseca ao homem, e depende em grande parte de quem a confere. E, como estas, existem outras definições de felicidade. Mas o bem supremo realizável pelo homem

(a verdadeira felicidade) consiste em aperfeiçoar-se enquanto homem. O homem deve, nesse sentido, exercitar-se naquela atividade que o diferencia de todas as outras coisas: a atividade da razão:

“A vida parece ser comum até as próprias plantas, mas agora estamos procurando o que é peculiar ao homem. Exclamos, portanto a vida de nutrição e crescimento. A seguir há uma vida de percepção, mas essa também parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todos os animais. Resta, pois, a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possui-lo e de exercer o pensamento”. (17)

Aristóteles continua, em seguida, reafirmando a razão:

"Afirmamos ser a função do homem uma espécie de vida, e esta vida uma atividade ou ações da alma que implicam um princípio racional; e acrescentamos que a função de um bom homem é uma boa e nobre realização das mesmas (…) o bem do homem nos parece como uma atividade da alma em consonância com a virtude; e, se há mais de uma virtude, com a melhor e a mais completa.. mas é preciso ajuntar numa vida completa. Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e virtuoso”. (18, 19)

Mas não é tão simples ser virtuoso, se é que isso é simples. O homem não é só composto de Razão, há na alma aspectos que a fazem oposição e resistem. E é justamente o domínio desses outros aspectos pela razão que caracterizam uma vida virtuosa. Todavia, a virtude é adquirida com a repetição sucessiva de uma série de atos, ou seja, através do hábito e do ensino.

"Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra gera-se e cresce graças ao ensino - por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito (…) nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza”. (20)

A alma racional tem dois aspectos, um que se volta para as coisas mutáveis da vida do homem, e outra que se volta aos princípios das verdades supremas. A primeira Aristóteles chamou de “sabedoria" (Phrónesis), e a segunda de "sapiência" (Sophia). Reale e Antiseri escreveram:

"A sabedoria consiste em dirigir bem a vida do homem, ou seja, em deliberar de modo correto acerca daquilo que é bem ou mal para o homem. Já a sapiência é o conhecimento daquelas realidades que estão acima. É precisamente no exercicio desta última virtude, que constitui a perfeição da atividade contemplativa, que o homem alcança a felicidade máxima”. (21)

O CONCEITO DE AMIZADE NA ÉTICA ARISTOTÉLICA

Segundo a ética aristotélica, uma vida virtuosa conduz o homem ao bem supremo, que é a felicidade. É justamente por isso que o tema da amizade está inserido na ética, pois a amizade é, segundo Aristóteles, estruturalmente ligada à virtude e à felicidade.

"Depois do que dissemos segue-se naturalmente uma discussão da amizade, visto que ela é uma virtude ou implica virtude, sendo além disso necessária à vida. Porque sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuisse todos os outros bens. E acredita-se, mesmo, que os ricos e aqueles que exercem autoridade e poder são os que mais precisam de amigos; pois de que serve

tanta prosperidade sem um ensejo de fazer bem, se este faz principalmente e sob a forma mais louvável aos amigos? Ou como se pode manter e salvaguardar a prosperidade sem amigos? Quanto maior é ela, mais perigos corre (..) a amizade também ajuda os jovens a afastarem-se do erro, e aos mais velhos, atendendo-lhes as necessidades (…) Aos que estão no vigor da idade

estimula à prática de nobres ações, pois na companhia de amigos “dois que andam juntos", os homens são mais capazes tanto de agir como de pensar”. (22)

Observa-se, desse modo, a importância da amizade: para os ricos, para os pobres, para os jovens, para os homens de meia-idade, e para os mais velhos. Pois ela possibilita ajuda, orientação e formação. Contudo, o amor de amizade implica em reciprocidade: "Para o amor dos objetos inanimados não usamos a palavra amizade, pois não se trata de amor mútuo nem deseja bem ao outro (seria, com efeito, ridiculo se desejássemos bem ao vinho; se algo lhe desejamos é que se conserve, para que continuemos dispondo dele). A fim de serem amigos, pois, devem conhecer uma à outra como desejando-se bem reciprocamente”. (23)

TRÊS FORMAS DE AMIZADE

Para Aristóteles o homem ama três coisas, e por essas coisas ele estabelece amizade; elas são: o útil, o aprazível e o bom. Nesse sentido, três são as formas de amizade:

"Há, assim, três espécies de amizade, iguais em mimero às coisas que são estimáveis; pois com respeito à cada uma delas existe um amor mútuo conhecido, e os que amam desejam-se bem a respeito daquilo que amam. Ora, os que se amam por causa de sua utilidade não se amam por si mesmos, mas em virtude de algum bem que recebem um do outro. Idêntica coisa se pode dizer dos que amam por causa do prazer; não é devido ao caráter que os homens amam as pessoas espirituosas, mas porque as acham agradáveis.

Logo, os que amam por causa da utilidade, amam pelo que é bom para eles mesmos, e os que amam por causa do prazer, amam em virtude do que é agradável a eles, e não na medida em que o outro é a pessoa amada, mas na medida em que é útil ou agradável. De forma que essas amizades são apenas acidentais, pois a pessoa amada não é amada por ser o homem que é, mas

porque proporciona algum bem ou prazer. Eis porque tais amizades se dissolvem facilmente, se as partes não permanecem iguais a si mesmas: com efeito, se uma das partes cessa de ser agradável ou útil, a outra deixa de amá- Ia”. (24)

Como vemos, a amizade baseada no útil e no aprazível é espúria, passageira e, de certo modo, até artificial, pois ela começa, muda e acaba ao sabor das circunstâncias.

Contudo, isso não ocorre com a amizade perfeita: “A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos.

Ora, os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são os mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão de sua própria natureza não acidentalmente. Por isso sua amizade dura enquanto são bons - e a bondade é uma coisa muito durável”. (25)

A AMIZADE PERFEITA ENQUANTO AMOR ENTRE OS SEMELHANTES

A amizade baseada naquilo que é bom engloba o útil e o aprazível:

"E cada um é bom em si mesmo e para o seu amigo, pois os bons são em absoluto úteis um ao outro. E da mesma forma são agradáveis, porquanto os bons o são tanto em si mesmos como um para o outro, visto que a cada um agradam as suas próprias atividades e outras que lhe sejam semelhantes, e as ações dos bons são as mesmas e semelhantes. Uma tal amizade é, como seria

de se esperar, permanente, já que eles encontram um no outro todas as qualidades que os amigos devem possuir”.(26)

Nota-se, com isso, que a amizade baseada no bom é a amizade entre pessoas boas ou virtuosas, pessoas que praticam a virtude. De quem Aristóteles estava falando? Estava falando da possibilidade do amor entre os cidadãos. Nesse sentido, o limite da amizade para Aristóteles estava circunscrito, nos limites da cidade de Atenas. Os semelhantes eram os atenienses, logo a amizade só poderia ser expressa entre indivíduos do sexo masculino nascidos de pais cidadãos (27), que praticam a virtude. Estão excluídos: as mulheres, os escravos, os estrangeiros e até os cidadãos não virtuosos.

A terceira forma de amizade baseada no bom, é perene por estar vinculada à característica que define o homem: a razão. Voltemos um pouco: a razão é o substrato que diferencia o homem de outros animais. A virtude é a busca do bem supremo. Essa busca só se dá com o exercício perene da razão dominando os desejos e vícios. Nesse sentido, a amizade verdadeira só se dá no amor àquilo que é bom, e o bom está no homem que utiliza sua razão e pratica a virtude.

Segundo Reale:

"Assim sendo, é clara a razão pela qual Aristóteles liga a amizade à virtude: a verdadeira forma de amizade é o laço que o homem virtuoso estabelece com o homem virtuoso por causa da própria virtude. Essa virtude é, como vimos, aquilo em que e através do que o homem atua plenamente a sua natureza e o seu valor de homem, de modo que a verdadeira forma de amizade é justamente, o laço que une os homens segundo o próprio valor de homem”. (28)

AMIZADE E EGOÍSMO

Podemos considerar no conceito de amizade uma dimensão onde o egoísmo não tem lugar, visto que Aristóteles afirma que “os bons serão amigos por eles mesmos, isto é, em razão de sua bondade”. (29) Mas esta interpretação parece estar equivocada, pois em vários momentos Aristóteles coloca que, inclusive na amizade entre os virtuosos, o amigo busca no amigo o próprio bem. Reale diz: "A amizade como dom gratuito de si ao outro é uma concepção totalmente estranha a Aristóteles: mesmo em seu mais alto grau, a amizade é entendida como uma relação de dar e receber que, embora no nível espiritual, deve de algum modo equilibrar”. (30)

Isso corrobora ainda mais a impossibilidade de amizade entre diferentes, a reciprocidade em escala equilibrada é imprescindível para o estabelecimento de uma amizade:

"Nem os velhos, nem as pessoas acrimoniosas parecem fazer amigos com facilidade. Com efeito, tais pessoas pouco tem de agradável, e ninguém deseja passar seus dias com alguém cuja companhia é dolorosa, visto que a natureza parece acima de tudo evitar o doloroso e buscar o agradável, mas as pessoas não podem conviver se não são agradáveis umas às outras e não se

deleitam com as mesmas coisas, como parecem fazer os amigos que são

também companheiros”. (31)

Mas existem amizades distintas, sendo que cada uma deve ser analisada segundo suas especificidades, e alguns aspectos relacionados à proporcionalidade de ganhos de cada uma das partes deve sempre ser levada em conta na análise referida, como nas amizade de:

“Pai para filho, e em geral, de mais velho para mais jovem, a de marido para mulher e, em geral, de governante para súdito. E essas amizades diferem também uma das outras, pois o que existe entre pais e filhos não é a mesma que entre governantes e súditos, nem a amizade de pai para filho é a mesma de filho para pai, como a de marido para mulher não é a mesma de mulher para

marido. Com efeito, a virtude e a função de cada uma dessas pessoas são diferentes, e por isso também diferem as suas razões para amar ..) cada parte pois, nem recebe a mesma coisa da outra nem deveria buscá-la; mas quando os filhos prestam aos pais aquilo que devem prestar aos que os puseram no mundo, e os pais aquilo que devem prestam aos filhos, a amizade entre lais pessoas é duradoura e excelente. Em todas as amizades que envolverem desigualdade, o amor também deve ser proporcional, isto é, o melhor deve receber mais amor do que dá, assim como deve ser mais útil, e analogamente em cada um dos outros casos; pois quando o amor é proporcional ao mérito das partes estabelece-se, em certo sentido, a igualdade, que é indubitavelmente considerada uma característica da amizade”.(32)

Nesse sentido, a paga não precisa ser com a mesma moeda, mas cada um deve dar aquilo que lhe cabe dar. Está presente nesta formulação o conceito de justiça, que é a "justa medida", segundo a qual se distribuem os bens, as vantagens, os ganhos e seus contrários.

Além disso, não podemos deixar de comentar, Aristóteles considera a justiça como a mais importante de todas as virtudes, pois em toda ela virtude está presente como a "mediania"

entre dois excessos.

Aristóteles reafirma frequentemente em seu escrito a questão do egoísmo, pois se deixar de referi-lo o homem deixa de ser de sua espécie; isso fica nítido na seguinte passagem:

“A resposta é que, se tinhamos razão em afirmar que o amigo deseja bem ao seu amigo por ele mesmo, este deve continuar a espécie de ser que é; portanto, é a ele, na medida em que continua sendo um homem, que o outro deseja os maiores bens, pois é a si mesmo, antes de qualquer outro, que cada homem deseja o bem”. (33)

AMIZADE E INTERSUBJETIVIDADE

Identificamos, anteriormente, os vários aspectos que estão intimamente relacionados ao conceito de amizade em Aristoteles. Vimos que a amizade está inserida em uma das ciências práticas, no caso a ética, e que, nesse sentido, ela afirma que todas as condutas humanas tendem a fins que não são bens, e que o maior bem é a felicidade. No caso, esta felicidade seria impossível sem a prática constante da virtude; sendo que, virtude e felicidade se encontram e se expressam na amizade, que por sua vez só tem lugar na presença do outro: na semelhança da bondade e na reciprocidade equilibrada dos ganhos. Estamos nos referindo, em cada momento que descrevemos o conceito de amizade Aristotélico, à uma forma especifica de encontro individual com o outro, ou de expressão específica da intersubjetividade. Um dos aspectos, já discutido, da intersubjetividade, está relacionado ao conceito de linguagem “entendida no seu sentido mais amplo como estrutura significante que se diferencia em múltiplas formas, desde a postura corporal e o gesto, até a prolação da palavra e a articulação do discurso, em partículas do discurso da interlocução(diá-logos)” (34)

Isso fica muito claro em Aristóteles, inclusive em sua definição de ser Humano como Zoôn Logikon, ser dotado de palavra. E é justamente este ser que poderá se expressar, em seu ponto máximo enquanto ser Humano, na prática das virtudes e, mais particularmente, na amizade perfeita - forma mais sublime de encontro com o outro. Emílio Lledó comentou sobre o encontro com o outro no conceito de amizade em Aristóteles:

"A medida do homem bom é também a medida da amizade. Sua bondade se expressa nessa capacidade para sentir o outro como bom, como agradável e útil, e também como medida de si mesmo”. (35)

Ao salientarmos a frase, “capacidade de sentir o outro como bom”, vemos claramente a noção de relação intersubjetiva em Aristóteles. Esta capacidade está intrinsecamente ligada à linguagem, e que possibilita apenas ao ser Humano observar o que é bom, e posteriormente se vincular a ele.

Aristóteles escreve, em vários momentos, que seria impossível viver sem amigos.

Isso demonstra o valor dado por Aristóteles à alteridade. Pois a riqueza do ser Humano que

se conhece, e que quer o bem a si mesmo, se supera com o desenvolvimento do semelhante, a quem também se pode desejar o bem. O gozo da existência, onde se manifesta sua grandeza e sua beleza, se amplia até as fronteiras onde ser é conviver. (36)

Notas:

3 Batista MONDIN. O homem, quem é ele? p.155

4 ARISTÓTELES. Política. P.147

5 Lima VAZ. Antropologia Filosófica II. P.40

6 ibid, p.53

7 Manuel Garcia MORENTE. Fundamentos de Filosofia. p.169.

8 Lima VAZ. Op. Cit. p.65.

9 Emmanuel LÉVINAS. Entre nós. p.154.

10 Lima VAZ. Op. Cit. p.66.

11 Martin BUBER. Eu e Tu. passin.

12 Lima VAZ. Op. Cit. p.87.

13 Junito de Souza BRANDÃO. Dicionário Mitico-Etimológico. v.1. p.447.

14 Lima VAZ. Op. Cit. p.68.

15 Giovanni REALE e Dario ANTISERI. História da Filosofia. v.1. p.178.

16 ibid, p.206.

17 ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. 1, 1098a 3-5.

18 ibid. 1. 1098a 13-17.

19 Assim era definida a virtude ou Areté: "a virtude é aquilo pela qual cada coisa desempenha da melhor

maneira a atividade que lhe é peculiar. Existe, pois, uma virtude da faca (que é a de cortar bem), do cavalo (que é a de correr bem). do olho (que é a de ver bem). A virtude do homem não é, pois, senão um caso particular (se quiser, privilegiado) da virtude que todas as coisas possuem. O homem é virtuoso quando

desempenha bem o que lhe é peculiar, sua racionalidade." Giovanni REALE. História da Filosofia Antiga. V.5. p.29.

20 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2, 1103b 15-20

21 Giovanni REALE e Dario ANTISERI. Op. Cit. p.206.

22 ARISTÓTELES. Op. Cit. 8, 1155a 1-16

23 ibid. 8, 1156a 27-30

24 ibid. 8, 1156b 6-22

25 ibid. 8, 1156b 24-30

26 ibid. 8, 1157a 10-17.

27 «Exceto alguns poucos que ocasionalmente ganhavam essa condição graças a leis especiais. Edward Macnall BURNS. História da Civilização Ocidental. v.1. p.118.

28 Giovanni REALE. História da Filosofia Antiga. V.2. p.423.

29 ARISTÓTELES. Op. Cit. 8, 1157b 37-38.

30 Giovanni REALE. Op. Cit. p.423.

31 ARISTÓTELES. Op. Cit. 8, 1158a 14-24.

32 ibid. 8. 1159a 8-28

33 ibid. 8, 1159b 10-14.

34 Lima VAZ. Op. Cit. p.50

35 «La medida del hombre bueno es también la medida de la amistad. Su bondade se expressa en esa

capacidad para sentir lo outro como bueno, como agradable y útil, y también como medida de si miesmo. Emilio Llédo. Aristóteles y la ética de la polis. p.194

36 Emilio Llédo. Op. Cit. passin.

37 Junito de Souza BRANDÃO. Op. Cit. p.39

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Politica. S. Paulo: Nova Cultural, 1999.

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1973

BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Biblia. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 1971.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico. 3.ed. Petropolis Vozes,

1997

BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Moraes, 1974.

BURNS, Edward Macnall. História da Civilização Ocidental. 37.ed. S. Paulo: Globo, 1996.

LLÉDO, Emilio. Aristóteles y la ética de la polis. História de la ética. v.1. Vitória Camps.

Barcelona: Crítica, 1987.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997.

MONDIN, Batista. O homem, quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 1980.

MORENTE, Manuel G. Fundamentos de Filosofia. 3.ed. S. Paulo: Mestrejou, 1967.

NOGUEIRA, João Carlos. O homem: reflexo e refém das tecnologias. Ser médico:

publicação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. n° 8, ano II.

pp.12-15. Jul/set, 1999.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. v.5. 5.ed. S. Paulo: Paulus, 1990

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. v.1. 5.ed. S. Paulo: Paulus,

1990

VAZ, Lima. Antropologia Filosófica. v.2. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1995.


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